J. B. SILVA, o popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas, era um desses homens que ainda morrendo da morte mais natural deste mundo dão a todos a impressão de que morreram de acidente. Zeca Patrocínio, que o adorava e com quem ele tinha grandes afinidades de temperamento, era assim também: descarnado, lívido, frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra. Que doença era a sua? Parecia um tísico nas últimas. Diziam que tinha muita sífilis. Certamente o rim estava em pantanas. Fígado escangalhado. Ouvia-se de vez em quando que o Zeca estava morrendo. Ora em Paris, ora em Todos os Santos, subúrbio da Central. E de repente, na Avenida, a gente encontrava o Zeca às três da madrugada, de smoking, no auge da excitação e da verve. Assim me aconteceu uma vez, e o que o punha tão excitado naquela ocasião era precisamente a última marcha carnavalesca de Sinhô, o famoso Claudionor...
que pra sustentar família
foi bancar o estivador...
Me apresentaram a Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos pretos do Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada! Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um "beijo puro na catedral do amor", enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica... Sinhô!
Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão.
Vi-o pela última vez em casa de Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o "Não posso mais, meu bem, não posso mais", que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afônico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava presente, ficou encantado.
Não faz uma semana eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou.
Seu corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). No cinema d'a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava "A Última Canção" de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.
Na crônica acima, extraída do livro “Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas”, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1966, pág. 11, ele narra sua convivência em vida com o famoso compositor da música popular brasileira, Sinhô, que muitos dizem ser o autor do primeiro samba, e a cena de seu velório, o que a faz uma peça descritiva de alto valor.
Minha lira tem um jeito de quem está perdido em um caminho sem volta, não há paredes, não há estradas, não há luz nem referentes, há apenas passos desvairados que me conduzem querendo voltar...
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Marcadores
- A. Simone (1)
- Abel Silva (1)
- Abgar Renault (1)
- Abílio Martins (2)
- Abraham Lincoln (1)
- Accioly Neto (1)
- Adelino Moreira (4)
- Agostinho dos Santos (1)
- Álbum - Negro Prison Songs (1)
- Alceu Valença (1)
- Aldemar Paiva (1)
- Aldir Blanc (1)
- Aldo Cabral (1)
- Alessandro Brito (155)
- Almir Guineto (2)
- Álvaro Campos (1)
- Amado Batista (2)
- Ana Paula Faria (1)
- Ana Paula Farias (1)
- Anais Nin (1)
- Aníbal Silva (1)
- Antonio Carlos Jobim (1)
- Antônio Gedeão (1)
- Antônio Maria (1)
- Áomse (1)
- Ariano Suassuna (3)
- Arnaldo Baptista (1)
- Ary Barroso (1)
- Ary Guarda (1)
- Assisão (1)
- Augusto Calheiros (1)
- Augusto dos Anjos (2)
- Autor desconhecido (2)
- Baden Powell (1)
- Basquete (1)
- Benedito Lacerda (1)
- Benito de Paula (1)
- Bertolt Brecht (1)
- Bezerra da Silva (2)
- Blog (4)
- Bob Marley (1)
- Bogdan Vilicic Neto (1)
- Brahms (2)
- Brás Costa (1)
- Bráulio Tavares/ Ivanildo Vilanova (1)
- Caldaíco (1)
- Cancão (1)
- Candeia (1)
- Capinan (1)
- Caprí (1)
- Carlos Drummond de Andrade (2)
- Carlos Elias (1)
- Cartas (1)
- Cartola (4)
- Castro Alves (3)
- Cazuza (2)
- Cecília Meireles (5)
- Chantal Castelli (1)
- Charles Baudelaire (1)
- Charles Bukowski (14)
- Charles Chaplin (2)
- Chico Anysio (1)
- Chico Buarque (6)
- Chico da Silva (1)
- Chico Santana (2)
- Chris Gardner (1)
- Ciro Monteiro (1)
- Clara Nunes (1)
- Clarice Lispector (1)
- Clarissa Corrêa (1)
- Classica (5)
- Claudionor (1)
- Claudionor Cruz (1)
- Clave de Azes (1)
- Clip (1)
- Cora Coralina (3)
- Coroné Caruá (1)
- Cristina Buarque (1)
- Dalva de Oliveira (1)
- Dança (1)
- Danielle Daian (2)
- David Nasser (3)
- Delcio Carvalho/ D. Ivone Lara (1)
- Deo (1)
- Dicionário (2)
- Dom Hélder Câmara (1)
- Dom Quixote (1)
- Domingos Oliveira (3)
- Dominguinhos (2)
- Dorival Caymmi (1)
- Doum (1)
- Eden Silva (1)
- Edeor de Paula (1)
- Ederaldo Gentil (2)
- Edu Lobo (1)
- Elizabeth Kubler-Ross (1)
- Elizeth Cardoso (1)
- Elma Moreira de Assis (8)
- Elpídio dos Santos (1)
- Elson Boa Gente (1)
- Elton Medeiros (2)
- Em cima da hora (1)
- Evaldo Braga (1)
- Expressão Ativa (1)
- Fabielle Tavares (1)
- Fábio Reynol (1)
- Fagner (1)
- Fausto Nilo (2)
- Fauzi Arap (1)
- Fernando Pessoa (1)
- Fernando Sabino (1)
- Ferreira Gullar (2)
- Filipe Marques (1)
- Flavia Tambalo (2)
- Flavio José (2)
- Flávio Venturini (1)
- Florbela Espanca (1)
- Francisco Buarque de Holanda (1)
- Francisco Otaviano (2)
- FRANZ KAFKA (1)
- Frase (65)
- Frase - Aisha Linda (1)
- Frase - Fernando Guedaro (1)
- Frase - Irvin D. Yalom (1)
- Frase - Ojuara (1)
- Frederico García Lorca (1)
- Friedrich Nieztsche (2)
- Gabriel García Márquez (2)
- Gabriel O Pensador (1)
- George Carlin (1)
- Geração Y (1)
- Geraldo Azevedo (1)
- Geraldo Babão (1)
- Giovanna Wyllys (1)
- Gipsy King (1)
- Gisa Nogueira (1)
- Glauber Rocha (1)
- Gordurinha (1)
- Grande Otelo (1)
- Grupo Chora Menino (1)
- Grupo Ponto de encontro (1)
- Guimarães Rosa (2)
- Hamilton de Holanda (1)
- Haroldo Barbosa (1)
- Helio Cabral (1)
- Herivelto Martins (2)
- Herivelton Martins (2)
- Hermann Hesse (2)
- Hermano Silva (1)
- Hermínio Belo de Carvalho (1)
- Hilda Hilst (1)
- Huberto Rohden (1)
- Império Serrano (1)
- Instituto Glória ao Samba (1)
- Isaias Souza (1)
- Ivan Lins (1)
- J. Cascata (1)
- J. S. Bach (1)
- J.Aguiar (1)
- J.S. BACH (2)
- Jessé (1)
- João Banana (4)
- João Cabral de Melo Neto (2)
- João de Aquino (1)
- João de Barro (1)
- João Laurindo (1)
- João Mineiro e Marciano (1)
- João Nogueira (2)
- Jorge Amado (2)
- Jorge Aragão (1)
- Jorginho do Império (1)
- Jorginho Pessanha (3)
- José Barbosa Junior (1)
- José Carlos (1)
- Jose Clementino do Nascimento Sobrinho (1)
- José Wilker (1)
- Joseph Joubert (1)
- karl Popper (1)
- kika Seixas (2)
- Lapso (6)
- Leon Tolstoi (1)
- Leonardo Mattos (1)
- Letra (2)
- Louis Armstrong (3)
- Luis Bonfá (1)
- Luis Fernando Veríssimo (4)
- Luís Reis (1)
- Luiz Gonzaga (2)
- Luizinho (1)
- Lulu Santos (1)
- Lupicínio Rodrigues (1)
- Mano Décio da Viola (2)
- Manuel Bandeira (3)
- Marcelo Jeneci (1)
- Marcílio José (1)
- Marcos Sacramento (2)
- Maria Bethânia (1)
- Marinalva (1)
- Marinês (1)
- Mário de Sá-Carneiro (1)
- Mário Faustino (1)
- Mario Quintana (1)
- Mário Quintana (1)
- Martha Medeiros (1)
- Martha Rivera-Garrido (1)
- Martin Luther King (1)
- Martinho da vila (3)
- Mauro Duarte (2)
- Mestre Candeia (1)
- Mestre Fuleiro (1)
- Miguel Esteves Cardoso (1)
- Miguel Falabella (1)
- Miles Davis (1)
- Millôr Fernandes (1)
- Mulher (1)
- Música (97)
- Nação Zumbi (1)
- Nat king cole (1)
- Nelson Gonçalves (8)
- Nelson Rodrigues (3)
- Nelson Sargento (1)
- Ney Matogrosso (1)
- Noel Rosa (2)
- Norman Vincent Peale (1)
- Octavio Paz (1)
- Olavo Bilac (1)
- Orlando Dias (1)
- Orlando Silva (1)
- Oscar Wilde (1)
- Osório Lima (1)
- Osvaldo Bezerra (1)
- Oswaldo Montenegro (3)
- Otávio Gabus Mendes (1)
- Outros (12)
- Pablo Neruda (3)
- Padeirinho (2)
- Paulinho da Viola (2)
- Paulinho Nogueira (1)
- Paulino Raposo (1)
- Paulo Cesar Pinheiro (3)
- Paulo César Pinheiro (2)
- Paulo Vanzolini (1)
- Pedro Caetano (1)
- Película - A felicidade não se compra (1947) (1)
- Película - Bicho de sete cabeças (2001) (1)
- Película - Clube da luta (1999) (1)
- Película - Meu pé de laraja lima (1970) (1)
- Película - Papillon (1973) (1)
- Película - Perfume de Mulher (1992) (1)
- Película - Uma avenida chamada Brasil (1989) (1)
- Pequeno Príncipe (1)
- Perfume de Mulher (1)
- Piada (1)
- Pinga (1)
- Pixinguinha (1)
- Poesia (1)
- Política (3)
- Protinari (1)
- Quincas do Cavaco (1)
- Racionais MC´s (1)
- Ratinho. (1)
- Raul Marques (1)
- Raul Seixas (6)
- Raul Varella Seixas (1)
- Reciclagem (1)
- Regina Vilarinhos (1)
- Remelexo (1)
- Rita Lee (1)
- Robério Maracajá (1)
- Roberto Ribeiro (1)
- Robeto Silva (1)
- Rolleiflex (26)
- Ronaldo Cunha Lima (1)
- Rubem Alves (2)
- Rubem Braga (1)
- Ruth Manus (1)
- Sabrina Rayna (1)
- Samba (1)
- Samuka 7 cordas (1)
- Santa Marta (Duas semanas no morro) (1)
- Santana (1)
- Sidney Miller (1)
- Silas de Oliveira (2)
- Silvio Silva jr (1)
- Site (1)
- Sombrinha (1)
- Soneto (1)
- Sophia de Mello Breyner Andresen (1)
- Steve Jobs (1)
- Sylvio Da Silva (1)
- Taiguara (1)
- Taú Silva (1)
- Tchaikovsky (1)
- Teddy Vieira (1)
- Téta Barbosa (1)
- Texto (1)
- Thomas Sowell (1)
- Tirinha (3)
- Toni Garrido (1)
- Toquinho (2)
- Tuffi Lauar (1)
- Vanessa da Mata (1)
- Venâncio (1)
- Vera Lúcia de Oliveira (1)
- Verônica Santana (2)
- Victor Hugo (1)
- Vinicius de Moraes (15)
- Vinícius de Moraes (1)
- Violetas (1)
- Vladimir Hergorz (1)
- Waldick Sorinao (1)
- Walter Coringa (1)
- Walter Nunes (1)
- Walter Rosa (1)
- Willian Shakespeare (1)
- WJ (1)
- Wolfgang Amadeus Mozart (1)
- Xangô da Mangueira (1)
- Zé Catimba (1)
- Zé Geraldo (2)
- Zeca da viola (1)
- Zeto do Pajeú (1)
- Zorba Devagar (1)
Nenhum comentário:
Postar um comentário