quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Súplica - Marcos Sacramento


Aço frio de um punhal
Foi teu adeus para mim
Não crendo na verdade
Implorei, pedi
As súplicas morreram
Sem eco, em vão
Batendo nas paredes frias do apartamento
Torpor tomou-me todo
E eu fiquei sem ser mais nada
Adormecido tenha
Talvez, quem sabe
Pela janela, aberta, a fria madrugada
Amortalhou-me a dor
Com o manto da garoa
Esperança morreste muito cedo
Saudade cedo demais chegaste
Uma quando parte
A outra sempre chega
Chorar se lágrimas não tenho
Coração, porque é que tu não paras
A taça do meu sofrer findaste
É inútil prosseguir
Se forças já não tenho
Tu sabes bem que ela era minha vida
Meu doce e grande amor.


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Mestre, meu mestre querido - Álvaro Campos

 

Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.


15-4-1928
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  - 31.


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Poesia Matemática - Millôr Fernandes

Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos romboides, boca trapezoide,
Corpo ortogonal, seios esferoides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela
Até que se encontraram
No Infinito.
“Quem és tu?” indagou ele
Com ânsia radical.
“Eu sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que era
— O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs —
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da Quarta Dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar
Mais que um lar,
Uma Perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta.
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

03.10.1950

Frase - Karl Popper

Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos.




quarta-feira, 11 de maio de 2022

Inspiração - Alessandro Brito

Fui como uma rosa desfolhada
Pelo vento açoitada
Voei sem destino, peregrino
Levado pelo tempo, cansado do mundo
Sem ter se quer um norte, um rumo
Aflito
Vi partir tudo que mais amo
Marcando minh´alma, o desengano
A felicidade sempre fugaz
Desfalecia a cada dia
Em meio aos desenganos, aos prantos
Suportei calado a minha dor
Eu sabia que um dia
De algum modo encontraria, inspiração
E na pureza de tua alegria, renasci trovador.

quinta-feira, 17 de março de 2022

A história do Zé - Jorginho Pessanha (Tô muito na minha - 1971)

Coitado do Zé
você já soube o que lhe aconteceu?
Era o mestre sala da escola de samba
Estava dançando e morreu
Disseram que foi
Paixão que nutria pela Rosalina
A porta bandeira que linda menina
Que o amor não lhe deu
Hoje a Rosalina não é a primeira a chegar na escola
Onde botava as outras na sacola
Com os seus passos de enlouquecer
Disseram até que ela gostava um bocado do Zé
Porém não mostrava que fazia fé
Esperando ele se esclarecer
Depois daquele ano
A escola de samba não tirou mais dez
Porque Rosalina jurou
De na avenida não por mais os pés.
Vem sambar Rosalina vem!


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Biografia - Cecília Meireles

Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
e não serei eu.

Repetirás o que ouviste,
o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,
e nada disso serei eu.

Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
e continuarei ausente.

Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
isso seria eu.

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.
Como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres como a cascata pelas pedras.
Que mortal nos poderia prender?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Comportamento social nos anos 2000 - Alessandro Brito


 De que serve minha vivência, em relação a tudo que envolve meu mundo, se dela não frutificar a observação da vida, do universo no qual estou inserido?

Meu ponto de partida quando critico as coisas que permeiam minha vida é a cultura, acredito que ela defina as influências e reflita diretamente no comportamento das pessoas. Ao se perceberem parte de uma sociedade procuram meios para se sentirem inseridas e aceitas.

 Eu que sou um amante da música então me pergunto, tem algo novo que eu goste, que seja tão bom ou melhor, em relação às músicas que tenho como referência (aquelas anteriores aos anos 2000)? Infelizmente, não! E pior que isso, na minha perspectiva elas estão muito distante da qualidade de outrora, em todos os aspectos. Mas quando verifico que toda essa produção (dos ano 2000 para cá) tem uma inflação de likes e reprodução, principlamente as músicas de ostentação e depreciação das relações e do feminio, essa constatação me faz refletir.

 Como exemplo,  basta verificar que o maior canal brasileiro no youtube é o do KondZilla com 65.2 milhões de inscritos e é também o canal com mais visualizações no Brasil, contando com 35.7 BILHÕES de visualizações, eu apenas vejo o reflexo de uma sociedade, essa da qual estou inserido e que tenho dificuldade em estabelecer-me.

Passo então para as redes sociais, da qual sou adepto, e que acho incrível, mas que discordo da forma como são usadas e injustamente culpadas. Não poderia ser diferente, eis o reflexo da atual sociedade, uma legião de esmoleu afetivos, gente carente de atenção, retrato de uma sociedade vazia em busca de aceitação.

O instagram é segundo melhor exemplo que posso trazer, dentro da plataforma a exposição do corpo é quase que uma regra para ter visualização, like e o falso sentimento de atenção. Mas essa exposição não se dá de forma casual, artística, natural, mas sim através de uma sexualização vulgar. Se considerar 35 BILHÕES de visualizações do KondZilla, não é de se estranhar esse cenário.

Mas acho mesmo que o melhor exemplo é sem dúvida o TikTok... Costumo dizer que ele é o atestado de imbecilidade com firma reconhecida em cartório, e consegue representar todos os elementos de carência dessa sociedade.

Claro que se somadas sexualização vulgar, ostentação e o incentivo a imbecilidade essa química só poderia resultar na falta de aceitação do corpo e consequentemente no culto dele, não pela saúde, mas apenas pela estética, na busca desenfreada pelo rejuvenescimento, entre tantas e tantas outras coisas.

Observo cada aspecto e faço meu juízo de valor, definitivamente não é esse fluxo que quero seguir. Não dispenso meu tempo ouvindo música de ostentação e depreciação das relações e do feminino, ainda prefiro deitar na rede e escutar os bons e velhos companheiros LPs. Discutir política incansavelmente por meio de comentários nas redes não mais, passei a me dedicar a leitura dos meus poucos livros (sempre fui um leitor preguiçoso), TikTok, Kway abririam falência se dependessem da minha audiência, não estou dando conta do conteúdo do MUBI e do Oldflix.

Apesar de perceber a sociedade atual dessa maneira, não deixo de socializar, me permito fazer novas amizades, afinal, seria leviano resumir uma outra pessoa, ou seja um outro universo, apenas por seu gosto musical ou sua posição política. Claro que é também uma linha tênue, alguns aspectos e posicionamentos são relevantes, mas até mesmo para conhecê-los é preciso se permitir!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Frase - Franz Kafka

 “Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?”


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