sábado, 9 de abril de 2011

Entrevista Nelson Rodrigues - Dom Hélder Câmara



Na década de 1970, Nelson Rodrigues criou uma série de entrevistas imaginárias e provocativas, diga-se de passagem para criticar aqueles de quem discordava ideologicamente...
Parte I
“Ele continuava: -- ‘O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém’. D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: -- ‘Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste: Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?’.

“Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: -- ‘A fome do Nordeste é a fome do Nordeste’. D. Hélder estende a mão: -- ‘Dá um dos teus mata-ratos’. Acendi-lhe o cigarro. ‘Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: -- Joana D’arc. Já viu a nossa querida Joana D’arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!’
Parte II
Agora era a vez da estagiária do Jornal do Brasil. Eis a pergunta: – “O que é que o senhor acha do amor?”. D. Hélder fez um risonho escândalo. Diz: – “Oh, oh!”. E responde com outra pergunta: – “Que idade você tem?”. Resposta: – “Dezenove”. D. Hélder ralhou, alegremente: – “E como é que você, aos dezenove anos, fale em amor? O que é o amor? Isso não existe, nunca existiu. O amor é a doença do sexo”. Estaca ao som da própria frase. Diz: – “Acho que fui feliz”. E repete: – “O amor é a doença do sexo”. Estimulado pela frase, foi adiante: – “O amor tem que ser exterminado. Nunca a morbidez é do sexo, sempre do amor. O sexo é de uma pureza, de uma inocência, de uma saúde totais. Vejam a lição dos vira-latas e dos gatos vadios. Olhem a praça da República. Não se conhece um Werther entre os gatos do Campo de Santana. Jamais um vira-lata matou, ou se matou, ou deu manchete na Luta ou no Dia. Precisamos matar o amor” .

Era o fim. A aragem fina desfez a imprensa imaginária. O Justino Martins tornou-se diáfano, o Cláudio Mello e Souza, incorpóreo, a estagiária, alada. Paletós, camisas, gravatas e sapatos, tudo se volatilizou. E, por muito tempo, o terreno baldio ficou ressoante da sábia frase: – “O amor é a doença do sexo”.  

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